segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Vila Natal

Ela estava sentada no terminal de ônibus em frente ao metrô Ana Rosa esperando o Vila Natal que a levaria até Moema para encontrar os amigos. Quando a vi não tive coragem de me aproximar, tinha muito a dizer-lhe e não sabia por onde começar. Ela era quase como me lembrava, os cabelos loiros compridos tingidos em casa com alguns centímetros de raiz escura exigindo retoque. Estava com as unhas vermelhas descascadas, usava a costumeira calça jeans larga, blusa de crochê e sandálias rasteiras de couro, eu tive a nítida sensação de tê-la visto há poucos dias. Tinha os mesmos imensos olhos acinzentados perdidos no horizonte e as sobrancelhas finas demais por ter exagerado com a pinça. Estava praticamente inerte, mexia as mãos esporadicamente para levar o cigarro até a boca, fumava com a mesma lentidão do domingo, da espera do ônibus e talvez para equilibrar o seu caos particular.

Quis correr e contar-lhe que tudo ficaria bem embora essa seja uma questão por demais filosófica e uma mentira muito deslavada. Dela nada me escapava, sabia que queria cursar Letras na Universidade de São Paulo, morava em uma pensão para mulheres ali perto do metrô Ana Rosa e de noite freqüentava o curso preparatório para o vestibular. Sempre aparecia bêbada e acompanhada do namorado e de alguns amigos vindos diretamente do bar. Normalmente o professor pedia para deixarem a sala de aula pois atrapalhavam o resto da classe com as risadas fora de hora e as perguntas sem contexto. Eles estavam acostumados a serem expulsos dos lugares por incomodarem os outros, talvez por isso não fizessem questão de fazer parte de lugar algum, então voltavam em bando para o bar onde eram bem vindos e estimulados a desligar o resto do mundo com mais um copo de cerveja.

Achei que de nada adiantava discursar contra as bebedeiras que lhe traziam a trégua do dia se sabia que aquilo não duraria mais que alguns poucos meses. Aquela gente que ainda não havia completado os vinte anos não lhe faria mal algum a não ser distraí-la com a rebeldia blasé e à toa deles, só estavam temporariamente perdidos. E pra que saber de alguma coisa nessa vida quando se tem a ingenuidade da juventude que promete um destino certo, com todo o tempo do mundo pra decidir o caminho. Eu poderia pelo menos sugerir que deixasse aquele namorado que era ainda mais inconseqüente do que ela, mas estavam apaixonados e poucas vezes na vida se tem a oportunidade de viver paixões tão intensas como as primeiras, quando ainda nada sabemos dos sentimentos a não ser o que nos contaram. Não poderia jamais encurtar a paixão dela, romanticamente concluí.

O ônibus Vila Natal chegou e ela entrou. Não queria perde-la de vista sem dizer nada. Entrei pouco depois para que não pudesse me ver, eu tinha medo das suas perguntas caso me reconhecesse e mais medo ainda das que eu não poderia responder. Ao invés de pagar o transporte ela pediu ao cobrador para passar embaixo da catraca alegando que não tinha dinheiro. Mentiu que havia sido assaltada. Fazia isso sempre e sem a menor vergonha. Os funcionários dos ônibus eram condescendentes e muitas vezes permitiam a ela descer quando quisesse e sem precisar pagar nada. Talvez porque ela definitivamente não parecia alguém que enganasse as outras pessoas, aquele ar rebelde não convencia ninguém. Na mesma hora decidi me aproximar e dizer-lhe que deveria ter vergonha de mentir para economizar o dinheiro do cigarro, talvez pudesse convencê-la quanto à honestidade e já seria alguma coisa.

Foi quando o mendigo que estava sentado próximo a ela se ofereceu para pagar a passagem, eu recuei. Ela assustada olhou o chinelo rachado, os pés sujos e a barba por fazer daquele homem de roupas rasgadas e cheirando mal, então negou o dinheiro que ele a ofertava. Ofendido, o mendigo entregou as moedas equivalentes ao valor do transporte dela para o cobrador e voltou ao seu lugar. Quase em choque ela agradeceu com um fio de voz e o homem virou-se com um meio sorriso como que sorvendo as palavras que eram dele por direito, depois desviou o olhar novamente. Ela pensou que tinha aprendido uma lição de compaixão e solidariedade. Levaria muito tempo para que ela pudesse perceber que a lição não era aquela, foi pela dignidade que ele o fez. Outro dia ela também saberia o valor da dignidade.

Comecei a ficar ansiosa por dizer-lhe qualquer coisa. Pensei em “use filtro solar!”, “faça sexo com camisinha!” ou “salve a natureza!”, mas seria patético. Então me ocorreu um bom conselho e uma ótima idéia. Eu poderia escrever a mensagem em uma folha de caderno e colocar discretamente, sem ser vista, na bolsa-carteiro gigante que ela levava, assim não teria que explicar nada. Seria fácil, ela estava distraída olhando a rua, talvez ainda pensando no mendigo. Escrevi em meu caderno o que queria lhe dizer, era algo clichê sobre comprar menos cosméticos e brigar menos com seus pais, foi tudo o que consegui pensar.

Quando levantei para pagar a minha passagem e prosseguir com o plano ela já estava em pé sinalizando ao motorista que partiria na próxima parada, então o ônibus freou e ela desceu. Que droga! Tínhamos chegado ao seu destino. Pensei em descer também, sabia o caminho que faria e poderia deixar a minha mensagem de alguma forma em seu trajeto, mas desisti porque aquela bobagem não faria a menor diferença, nada útil havia me ocorrido. Amassei a folha sem serventia e decidi me focar no caminho de volta ao metrô, do qual eu havia desviado. O ônibus voltou a andar e eu segui dentro dele enquanto a observava atravessando a Avenida Ibirapuera, já acendendo outro cigarro. 

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