sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O Valor

Não vou dizer que tudo que vivi valeu a pena pois o fato é que boa parte sequer me ensinou, tampouco ficou. Eis a beleza da vida que ressignifica e consolida aquilo que ela mantém, assim nos é preservado o que é de verdade, o que é importante e nos faz melhor. Assim discernimos o que valeu a pena.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Regras

Cheguei exausta, mal podia sustentar o barulho da minha mente tumultuada sob meu tronco que se esforçava para manter-se ereto. Sentei no sofá respirando a tranqüilidade não habitual daquela sala. Eu precisava de uma pausa antes de encará-los. Não tive muito tempo. Vieram correndo e pularam em meu colo repletos de uma alegria desinteressada, como se não me vissem há alguns dias. Quis pausar aquela cena para vivê-la depois, com calma.

Passaram a me bombardear com suas rotinas descomplicadas e tive inveja deles. Perguntaram-me sobre as regras de um jogo de cartas que eu os havia ensinado há alguns dias e eu, por cansaço, tive vontade de dizer-lhes para inventarem as suas próprias regras, mas desisti temendo que seus repertórios infantis pudessem deixar o jogo inviável, mesmo com a comprovada capacidade imaginativa que tinham, ou por causa dela.

Respirei profundamente e repeti todas as instruções do jogo tirando as dúvidas que tinham, então, em busca do conhecimento empírico, foram os dois correndo para o quarto de brinquedos. Senti-me aliviada, estava difícil encará-los, em minha loucura de mãe suspeitava que poderiam ver através dos meus olhos, que poderiam notar em minha fisionomia que faltava alguns traços que ali estavam quando nasceram.

Traços de amor a uma ideologia religiosa ou espiritualista da crença em um mundo utopicamente melhor. Será que eu tinha mesmo esses traços ou será que era apenas a maquiagem de boa qualidade que eu usava na época? Deveria ser aquela base de uso habitual e de cobertura perfeita que me impedia de ver as minhas imperfeições.

Se eles notassem eu nunca saberia como explicar. Diria titubeante, gaguejando talvez, que tudo o que eu fazia em minha vida desde que nasceram era por eles, para que tivessem seus sonhos realizados, porque aprendi custosamente que o mundo não é um conto de fadas e porque precisava proteger a todos nós. Diria aquele clichê que os pais dizem quando não podem explicar qualquer coisa, diria que na hora certa eles me entenderiam.

Eles não aprovariam. Odiei o pragmatismo das crianças por um momento e no momento seguinte já odiava a mim mesma que um dia cheia de caráter e moral apontei dedos que eu nem tinha para pessoas tão honestas quanto eu. Talvez quando forem compelidos a agir contra os valores que lhes ensinei, por escolha deles e a pesar das outras alternativas, poderemos discutir ética, a ética que não se aprende nas lições de moral de desenhos animados.

Gostaria de vê-los agindo sempre com respeito e empatia, não posso imaginá-los de outra forma porque seria como se eu tivesse errado ao educá-los, seria como se eu tivesse me ausentado quando precisaram das instruções corretas. Eu ficaria orgulhosa em saber que gerei seres humanos de boas qualidades morais, espécies melhores do que as que conheço. Melhores do que eu, que minto para ambos enquanto ensino sobre altruísmo e prioridades.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Na Linha

Penso que essa relação de conectividade e dependência é patologia da tal da geração Y, desses meninos que mal aprenderam a apertar uma tecla e já estão com seus iphones enviando mensagens de texto para os amiguinhos com frases incompreensíveis, carregadas de gírias e palavras sem acentos. É melhor mesmo que estejam conectados todo o tempo possível desde já, afinal após o iminente término da infância a questão da identidade será um grande problema que terão que resolver, além das espinhas que terão na cara. OK. Também envio mensagens de texto para os meus amigos, mensagens essas que são substancialmente coloquiais e sem acento. Faço isso porque gosto de viver conectada com pessoas que precisam cuidar de seus trabalhos, famílias, relacionamentos, filhos, cultura e lazer e freqüentemente tem tempo escasso para nos encontrarmos. As minhas amigas de infância e eu estamos há três semanas tentando marcar um encontro e ainda não foi possível devido a impossibilidade de sincronizar as agendas. Na maioria das vezes me comunico com elas por SMS, também por e-mail ou pelo Facebook, é mais fácil do que ligarmos umas para as outras para dizermos repetidas vezes que não poderemos comparecer ao próximo evento pois estamos novamente muito atarefadas. Claro que eu tenho um perfil no Facebook, o que não faz de ninguém um tecnofreak, mas sim um indivíduo. Quem não interage nas mídias sociais hoje em dia não existe por completo, apenas vive parcialmente em um dos muitos universos possíveis de se transitar, sem as fragmentações e desdobramentos que nos permite (a mim e ao resto da humanidade) a vida em rede, conectada a outras vidas de multiplas identidades, narcísicas, esquizofrênicas e bipolares. Meu primeiro contato com a Internet foi em 1994, junto ao resto dos brasileiros, mergulhei nela de tal forma que os chamados nativos digitais demoram a me reconhecer como imigrante, mas não sou de maneira nenhuma tecnodependente. Não ando com meu notebook embaixo do braço, não tenho smatphone, tablet e nem nada da Apple, que é o carimbo dos tecnobsessivos. Eu aprendi o que era um meme não tem nem uma semana! Eu tenho caderno, faço anotações (no meu caderno com a minha lapiseira) e leio jornal. Eu amo livros, compro livros, freqüento livrarias e bibliotecas. OK. Não compro CDs e nem alugo filmes desde que me apresentaram o Torrent. Eu gosto muito do Torrent (mas menos do que dos livros) e não discuto suas implicações éticas pois ninguém se da ao trabalho de discutir o tema, mas caso seja do seu interesse podemos discuti-lo. Ah, eu escrevo nesse blog, mas é um blog de gente que não é tecnomaniaca, ninguém nem lê! Só você mesmo. Enfim, pelos motivos já citados anteriormente eu envio mensagens de texto todos os dias e hoje gostaria de enviar um SMS e eis que me dei conta que esqueci o celular em casa. Estava no ônibus quando percebi. Tenho o costume de ficar com o celular na mão quando estou percorrendo algum trajeto de ônibus... me relacionando! E hoje tinha que mandar essa mensagem e outras... tinha que confirmar minha presença em um evento... nada disso seria possível... meu pai e meu irmão poderiam me ligar para saber que horas eu voltaria, querendo combinar um jantar ou coisa assim...alguém (qualquer pessoa) poderia querer me contar alguma coisa que eu precisasse saber imediatamente, algo gravíssimo...ou uma fofoca...um convite irrecusável, porque não? Nada disso aconteceria, o mundo das possibilidades me foi arrancado nessa tarde. Eu me senti incompleta, inacessível, excluída, vazia e offline. O meu eu precisa ter acesso ao eu de outras pessoas para caso haja uma eventual necessidade. Havia necessidade. Fiquei angustiada, entediada e ansiosa para voltar pra casa, correr ao encontro do meu celular e ver as chamadas perdidas e as mensagens recebidas. Quando finalmente nos encontramos, eu e meu telefone celular simplesinho que já tenho há três anos e não planejo trocar tão cedo, não havia nada a não ser uma mensagem da minha operadora de celular tentando, certamente, me irritar com mais uma oferta repetida e não segmentada e outra da minha mãe, dizendo que tinha saudades.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Depoimento

Preciso lembrar como é ser feliz, como é mesmo? Eu já não consigo lembrar a última vez em que estive feliz. O lazer é preencher a solidão anestesiando meu corpo e a minha mente já viciada na angústia. Como suportar? Como superar? Eu pensei que tudo ia ficar bem... que Deus ia cuidar de mim. Eu sempre achei que Deus cuidaria de mim por mérito, não é... irônico? Eu estou pronto pra escolher qualquer... caminho que possa me trazer... vida, mas não consigo ver nada, parece que é neblina, acho que não vai cessar. Quando você me encontrar logo verá que falta vida em mim, olho no espelho e vejo que me falta cores, eu tenho olhos opacos, sépia. Lembranças me aterrorizam o tempo todo, arrependimento das escolhas mal feitas, de ter sido tão ingênuo e ter me metido em tantas enrascadas, dias de erros, de buscas sem sentido, de tombos. Talvez eu esteja deprimido. Absolutamente, eu estou deprimido. Posso dizer muito deprimido? Existe superlativo para a depressão ou a depressão é o aumentativo da tristeza? Alguém disse que a felicidade é uma escolha, mas não vende no supermercado (apesar do anúncio me perguntando o que me faz feliz) e nem na internet. A aeromoça não me perguntou se eu quero ser feliz ou triste no último serviço de bordo e nem a menina do drive thru me ofereceu uma porção de felicidade média pelo acréscimo de apenas três reais no pagamento do meu pedido. Gostaria de abrir o armário todos os dias de manhã e vestir felicidade para sair de casa e cumprir minha rotina, por alguma razão eu acredito que a felicidade está no armário, está perdida em algum canto empoeirado, empoeirada também, e eu vou acabar encontrando sem querer (mesmo querendo muito) hora ou outra... mas nada ainda.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Vila Natal

Ela estava sentada no terminal de ônibus em frente ao metrô Ana Rosa esperando o Vila Natal que a levaria até Moema para encontrar os amigos. Quando a vi não tive coragem de me aproximar, tinha muito a dizer-lhe e não sabia por onde começar. Ela era quase como me lembrava, os cabelos loiros compridos tingidos em casa com alguns centímetros de raiz escura exigindo retoque. Estava com as unhas vermelhas descascadas, usava a costumeira calça jeans larga, blusa de crochê e sandálias rasteiras de couro, eu tive a nítida sensação de tê-la visto há poucos dias. Tinha os mesmos imensos olhos acinzentados perdidos no horizonte e as sobrancelhas finas demais por ter exagerado com a pinça. Estava praticamente inerte, mexia as mãos esporadicamente para levar o cigarro até a boca, fumava com a mesma lentidão do domingo, da espera do ônibus e talvez para equilibrar o seu caos particular.

Quis correr e contar-lhe que tudo ficaria bem embora essa seja uma questão por demais filosófica e uma mentira muito deslavada. Dela nada me escapava, sabia que queria cursar Letras na Universidade de São Paulo, morava em uma pensão para mulheres ali perto do metrô Ana Rosa e de noite freqüentava o curso preparatório para o vestibular. Sempre aparecia bêbada e acompanhada do namorado e de alguns amigos vindos diretamente do bar. Normalmente o professor pedia para deixarem a sala de aula pois atrapalhavam o resto da classe com as risadas fora de hora e as perguntas sem contexto. Eles estavam acostumados a serem expulsos dos lugares por incomodarem os outros, talvez por isso não fizessem questão de fazer parte de lugar algum, então voltavam em bando para o bar onde eram bem vindos e estimulados a desligar o resto do mundo com mais um copo de cerveja.

Achei que de nada adiantava discursar contra as bebedeiras que lhe traziam a trégua do dia se sabia que aquilo não duraria mais que alguns poucos meses. Aquela gente que ainda não havia completado os vinte anos não lhe faria mal algum a não ser distraí-la com a rebeldia blasé e à toa deles, só estavam temporariamente perdidos. E pra que saber de alguma coisa nessa vida quando se tem a ingenuidade da juventude que promete um destino certo, com todo o tempo do mundo pra decidir o caminho. Eu poderia pelo menos sugerir que deixasse aquele namorado que era ainda mais inconseqüente do que ela, mas estavam apaixonados e poucas vezes na vida se tem a oportunidade de viver paixões tão intensas como as primeiras, quando ainda nada sabemos dos sentimentos a não ser o que nos contaram. Não poderia jamais encurtar a paixão dela, romanticamente concluí.

O ônibus Vila Natal chegou e ela entrou. Não queria perde-la de vista sem dizer nada. Entrei pouco depois para que não pudesse me ver, eu tinha medo das suas perguntas caso me reconhecesse e mais medo ainda das que eu não poderia responder. Ao invés de pagar o transporte ela pediu ao cobrador para passar embaixo da catraca alegando que não tinha dinheiro. Mentiu que havia sido assaltada. Fazia isso sempre e sem a menor vergonha. Os funcionários dos ônibus eram condescendentes e muitas vezes permitiam a ela descer quando quisesse e sem precisar pagar nada. Talvez porque ela definitivamente não parecia alguém que enganasse as outras pessoas, aquele ar rebelde não convencia ninguém. Na mesma hora decidi me aproximar e dizer-lhe que deveria ter vergonha de mentir para economizar o dinheiro do cigarro, talvez pudesse convencê-la quanto à honestidade e já seria alguma coisa.

Foi quando o mendigo que estava sentado próximo a ela se ofereceu para pagar a passagem, eu recuei. Ela assustada olhou o chinelo rachado, os pés sujos e a barba por fazer daquele homem de roupas rasgadas e cheirando mal, então negou o dinheiro que ele a ofertava. Ofendido, o mendigo entregou as moedas equivalentes ao valor do transporte dela para o cobrador e voltou ao seu lugar. Quase em choque ela agradeceu com um fio de voz e o homem virou-se com um meio sorriso como que sorvendo as palavras que eram dele por direito, depois desviou o olhar novamente. Ela pensou que tinha aprendido uma lição de compaixão e solidariedade. Levaria muito tempo para que ela pudesse perceber que a lição não era aquela, foi pela dignidade que ele o fez. Outro dia ela também saberia o valor da dignidade.

Comecei a ficar ansiosa por dizer-lhe qualquer coisa. Pensei em “use filtro solar!”, “faça sexo com camisinha!” ou “salve a natureza!”, mas seria patético. Então me ocorreu um bom conselho e uma ótima idéia. Eu poderia escrever a mensagem em uma folha de caderno e colocar discretamente, sem ser vista, na bolsa-carteiro gigante que ela levava, assim não teria que explicar nada. Seria fácil, ela estava distraída olhando a rua, talvez ainda pensando no mendigo. Escrevi em meu caderno o que queria lhe dizer, era algo clichê sobre comprar menos cosméticos e brigar menos com seus pais, foi tudo o que consegui pensar.

Quando levantei para pagar a minha passagem e prosseguir com o plano ela já estava em pé sinalizando ao motorista que partiria na próxima parada, então o ônibus freou e ela desceu. Que droga! Tínhamos chegado ao seu destino. Pensei em descer também, sabia o caminho que faria e poderia deixar a minha mensagem de alguma forma em seu trajeto, mas desisti porque aquela bobagem não faria a menor diferença, nada útil havia me ocorrido. Amassei a folha sem serventia e decidi me focar no caminho de volta ao metrô, do qual eu havia desviado. O ônibus voltou a andar e eu segui dentro dele enquanto a observava atravessando a Avenida Ibirapuera, já acendendo outro cigarro. 

domingo, 28 de agosto de 2011

Aquela Menina

A beleza dela afrontava as outras meninas de modo que lhes despertava seus medos mais sombrios do abandono, da rejeição e do desafeto. Ainda porque era doce e de personalidade delicada, nenhuma qualidade negativa saltava aos olhos para que elas a pudessem condenar livrando-se rapidamente do desconforto. Ela não sabia que sua presença metamorfoseava as outras em animais selvagens. Bichos que instintivamente lutavam por um lugar no universo das aparências, o que lhes garantiria a dignidade e possível felicidade como asseguravam os valores ensinados ali mesmo. Elas a criticavam em tudo o que fazia, dizia e planejava, com comentários sutis e olhares oblíquos desvalorizavam tudo o que a ela pertencia. Sentiam um enorme prazer em vê-la excluída do grupo ou em dificuldades. Ela não podia ver o que causava ao escancarar sua beleza notável diante de figuras tão comuns. Caso soubesse certamente se faria feia tamanha a dor que sentia diante do desprezo e em nome da ânsia em ser aceita pelas demais. Ignorava a verdade porque desde cedo teve o infortúnio de trazer à tona o pior lado delas. O tempo passou e aquela menina perdeu gradativamente a confiança em si mesma e se mostrava a cada dia mais titubeante e insegura, quanto mais frágil menos incomodava as outras que, ainda assim, cuidavam enquanto podiam para que ela não reivindicasse o seu lugar.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Fragmentos

Eu caminho na Avenida Paulista cruzando com você a todo o momento, de terno, de bigode, de regata e skate na mão, de correntes de ouro, vestindo jeans e camiseta pólo, loiro, moreno, japonês. Procuro reconhecer você fragmentado em cada indivíduo que se aproxima de mim, se reconheço, mesmo que seja um pouco, já me serve e podemos ir ao cinema ou beber um chope. Se nele muito encontrar de você posso me apaixonar insanamente. Posso escrever-lhe versos de amor para você e enviar-lhe cartas que falam de nós dois. É provável que ele me deixe por não se encaixar na minha saga apaixonada por você ou por incoerência, discrepância e falta de senso, de nexo. É provável que eu o deixe por estar sempre frustrada, continuamente decepcionada pelo engano cometido. Como posso errar tanto se procuro apenas você? Sei onde está agora, seu nome e endereço, tenho as suas chaves. Mas fantasio que vou te encontrar em outros lugares, em uma reunião de trabalho, perdido na noite, em um ônibus qualquer ou caminhando na Avenida Paulista, na direção oposta.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Ilusões

Ele chegou naquela madrugada e não tínhamos conversado ainda, o constrangimento pairava entre nós dois, quis lembrar em vão o momento exato em que perdemos a intimidade. Estávamos sentados na mesa do café da manhã, eu calada esperando ele comentar que não gostava do meu corte de cabelo, ele mastigando o pão com olhar perdido no nada. Finalmente ele me encarou e disse que meu cabelo não estava legal, esperei que completasse a frase dizendo qualquer coisa sobre o quanto eu havia engordado e tornando assim o momento ainda mais desagradável, isso não aconteceu e fiquei frustrada, quase levantei e desfilei na cozinha para que ele reparasse os quilos a mais. Eu o odiaria. Eu queria odiá-lo e isso me assustou.

Angustiada com meus pensamentos comecei a falar sem parar. Falei do tempo, dos cachorros, da receita da broa de fubá. Via as minhas frases se desfazendo no ar como fumaça enquanto ele cortava outro pedaço de bolo respondendo a minha ladainha com grunhidos esporádicos, não disse uma só palavra. Pensei que deveríamos dormir e mais tarde tudo estaria diferente (não ousei pensar que estaria bem). Certifiquei-me de que ele estava bem instalado no quarto de hóspedes e depois tentei um beijo sem sucesso, ele mal moveu os lábios. Eu estava me esforçando e não duvidava do empenho de quem viajou quase seis horas só pra poder me criticar e ignorar pessoalmente. Fui dormir com vontade de acordar em outro tempo, em outro lugar.

Acordei horas depois, ele estava sentado em minha cama me observando. Sentei sonolenta e com medo de dizer qualquer coisa errada afinal só o silêncio parecia seguro naquele momento. Então ele falou primeiro, disse que estava ali para descobrir se ainda me amava. Contou que havia se tornado um homem mais tolerante nos meses em que eu estive longe e que ainda assim não sabia se suportaria nossas diferenças. Achei racional e nada respondi. Sempre tive pavor de perdê-lo e por muito tempo fingi que não tínhamos diferenças, eu mentia pensando que assim preservaria o seu amor, inventava...

Eu sempre soube que o amava, sabia que o amava mesmo naquele momento assim como sabia que só o amor não bastaria. Percebi que nossas limitações eram o ponto final mais escancarado que poderia existir, eram o campo minado que separava nossos universos particulares. As ilusões vão embora sem olhar pra trás quando as nossas invenções deixam de nos convencer, é difícil pra cacete não sair correndo atrás delas pedindo que fiquem um pouco mais, para um café ou coisa assim.

Estava exausta, mas disposta a ficar mais um pouco para o último dedinho de prosa como é do meu feitio, sou sempre a última a deixar as festas. O dia estava lindo e eu tive uma idéia, o convidei para irmos até o rio, ele adorava pescar e poderíamos almoçar na represa. Ele sorriu deixando formar as covinhas que eu tanto gostava, então começamos a planejar o passeio. Não acordamos nada verbalmente, mas nenhum de nós dois pronunciou qualquer frase negativa, deixamos pra outro dia mais nublado, talvez. Foi uma tarde alegre de sol, cerveja e peixes.

domingo, 14 de agosto de 2011

Vida...ou sei lá o que

De tempo em tempo
Perdido no tempo
De quem persegue
O tempo perdido
Ou sei lá o que

Em busca da sorte
Sonhando como um menino
Ainda cheio de garra
Confiante em Deus
Ou sei lá no que

Outro rosto anônimo
Que briga com o destino
Consciênte da razão
Dos livros, dos seus...
Ou sei lá de quem

É mais um que procura
Sonha
Confia
Enfrenta e desafia
Sabe-se lá o que

De tempo em tempo
Perdido no tempo
De quem persegue
O tempo perdido
Ou sei lá o que

Chegou cansado
Justificando sem graça
Seu retorno prematuro
Do encontro com a felicidade
Ou sei lá de onde

Querendo uma trégua
Pra beber uma cerveja
E dormir tranquilo
Livre do relógio, do calendário...
Ou sei lá do que

Foi mais um que procurou
Sonhou
Confiou
Enfrentou e fracassou
Sabe-se lá o quanto



Adaptado de Hildemberg Campi Gomes Filho




segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Sentido

Acho que foi de tanto eu pedir um milagre. Acho que foi porque eu parei de esperar um milagre. Sei lá. Deve ter sido porque as coisas são assim, do jeito que são. Não há nenhum mistério relevante. Não há nada nas entrelinhas dessa história, a simplicidade das palavras que se encaixam uma nas outras dão sentido às frases. As gírias, os sotaques, os coloquialismos carregados de clichês revelam uma verdade escancarada, praticamente absoluta. É isenta de ambigüidade. Nada além, nada a mais. É banal, sensível e verdadeira. Bonita a sua maneira, comum e trivial. Efêmera. E de tão acessível que é, é o próprio milagre desnudo, de braços abertos diante da sua perplexidade ao encará-lo.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Você não Veio

Hoje você não apareceu. Escolhi a roupa mais bonita pra chamar a sua atenção, pelo menos hoje. Todos os dias quando você vem eu desfilo na sua frente com as minhas caras e bocas, com as minhas cores e os meus versos, mas você nunca me olha. As vezes sei que olha de canto, mas ignora a minha presença pois nada em mim desperta nada em você. Acho que é porque você acha que me conhece, pensa que eu sou dessas mulheres volúveis e voláteis, dessas que nunca vão obedecer os seus caprichos de macho alpha. Você prefere aparecer com as suas menininhas todas comportadas e de risada contida. Todas bonequinhas de massinha de modelar. Você senta na mesa calado, com seus amigos estranhos e sem nenhuma graça. Muitas vezes pensei que faltava vida em todos vocês e tive pena, uma pena genuína. Eu tenho dó das pessoas assim, quietas, inertes e com roupas tendendo ao bege, tenho uma impressão terrível que estão bloqueando todas as coisas que vem de dentro e enxotando todas as coisas que vem de fora, por isso são tão estáticas, porque precisam fazer um imenso esforço. Mas então eis que esbarrei em você e fui inventar de ser gentil, afinal sou mesmo muito simpática, dessas mulheres que tem vários amigos e conversam com todo mundo, dessas dadas, no seu conceito de vida. Mas que besteira fui fazer. Depois disso, daquele dedinho de prosa, daquele sorriso simples que você tem (maldito sorriso simples que me ferrou) eu passei a te esperar em vão todas as tardes. É que eu gostei daquele silêncio que tomou conta do ambiente quando conversamos, sabe? Daí pensei que talvez você e seus amigos estranhos só estejam tão quietos por causa do silêncio e só estão parados conforme a falta da música. Foi assim que senti quando você foi embora com a sua gentileza, a sua falta de senso de humor e o seu sorriso simples. Agora te observo enquanto você faz que não percebe, talvez porque faço sempre muitíssimo barulho e você não gosta, gosta de ir e vir sem ser notado, sem deixar pistas, assim comete impunemente o crime que quiser, esse é o seu segredo. Mas eu te notei e me deu uma vontade doida de te obedecer, de vestir bege e chegar flutuando nos ambientes de mãos dadas com você, praticamente invisível. Olha que coisa estranha! Então venho só pra ver se você esbarra em mim outra vez, pra ver se tenho alguma chance de roubar um pouquinho do seu silêncio.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Voltei pra Casa

Agora que já está tudo no lugar parece que eu sempre estive aqui. É como voltar de umas férias curtas ou de um feriado na casa de uma grande amiga que eu nem sabia que tinha. É como acordar de um sono merecido e agitado após incontáveis dias tentando desarmar aquela confusão. Parece que fiz uma aposta com um anjo brincalhão que quis desbancar toda a minha hipocrisia e logo fui alforriada por me dar conta dos limites da minha humanidade. Sinto-me um personagem daquelas histórias em que o herói sai em busca de um tesouro, percorre um caminho fabuloso e depois o encontra enterrado exatamente onde iniciou a aventura. Agora que está tudo no lugar, tudo de volta ao lugar, eu vou tomar um café com os velhos amigos. Eu voltei pra casa. Foi tão rápido que nem tinha percebido que ontem ficou no passado.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Sábado

Acordei com as sensações misturadas. Percebi que respirava sem dificuldades, talvez pelo efeito do naldecon noite. O ar entrando e saindo dos meus pulmões me trouxe um delicioso bem estar, a posição era perfeita e a cama grande e quente, como se a temperatura houvesse sido regulada para harmonizar com o meu corpo. O ar transitando livremente foi embalando um sono leve e descomprometido...

De repente senti culpa. Uma culpa específica, localizada, direcionada. O arrependimento era sólido e formava uma barreira impedindo o caminho natural do ar, que me faltou. Senti uma pontada no peito, uma gastura do estômago e um incomodo mal definido. Chequei a minha posição na cama e não havia nenhum desconforto que eu pudesse corrigir.

Os pensamentos estavam soltos e não eram democráticos, eram esquerdistas e me acusavam de conspirar contra minha própria independência. Eu os odiei por me julgarem daquela forma banal e sem conhecimento de causa. Mas eu não precisava me preocupar naquela hora, o edredom me protegia e o sono me embalava consolador, o ar que entrava e saía de dentro de mim levava aqueles pensamentos intrusos embora e trazia um novo sono guardado por um tempo abundante e não contado...

Os sonhos eram de esperança e me compensavam anunciando tempos alegres. Às vezes o barulho dos carros e o latido das cachorras me despertavam e eu oscilava entre as duas realidades. Em ambas eu respirava tranquila e me sentia cuidada pelos pensamentos que enfim se filiaram ao meu partido, justamente.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Declaração de Amor

Eu dei a ela um lar para voltar após o trabalho, um lar que foi completamente arrumado por ela, com as paredes brancas e os móveis de pinho. Eu não gosto de pinho. Não tive coragem de dizer quando ela escolheu aquele armário na Etna, éramos noivos e ela já tinha todos os planos para a decoração da casa. Não que não tenha considerado a minha opinião, perguntou o que eu achava e menti para fazer o gosto dela. Besteira de gente jovem apaixonada. Aquele armário não existe mais, porém todos os nossos móveis são de pinho, sempre compramos móveis de pinho para combinar com o resto da decoração da casa. Hoje se eu disser que prefiro mogno gastaria uma fortuna para substituir a mobília.

Algumas vezes ela troca as cortinas e compra novos enfeites, tem vocação para ajeitar as coisas. O quarto dos meninos nunca mudou, ela diz que é para que se sintam em casa caso queiram voltar das aventuras pelo mundo, por alguma necessidade ou até mesmo por saudade, diz ela saudosa da casa cheia. O quarto da Mariana ela mudou, comprou uma cama de casal depois do casamento e já planeja o lugar do berço embora Mariana ainda não tenha apresentado interesse pela maternidade. Talvez já tenha apresentado, eu não sei, aprendi que tem coisas que cabem apenas às mães e filhas.

Ela gosta de viajar e todo ano escolhe o roteiro das férias, sempre discutimos. Gosto de campo e tranquilidade, quanto a ela, as praias e o agito são as primeiras opções. Antes passávamos horas decidindo o destino e as brigas eram de praxe, eu dizia que trabalhava duro para manter nossa família e precisava de descanso e paz em meu único momento de lazer, ela argumentava dizendo que morria de tédio, sempre. Depois ainda vieram as crianças com suas vontades próprias e ficou pior. Hoje somos nós dois outra vez e estou um pouco mais flexível. Aposentei-me e tenho tido mais tempo para descansar.

Sei que sente gratidão pelo lar que lhe dei, pelos filhos criados sem precisarmos lhes poupar nada. É grata pela vida confortável e de preocupações amenizadas. Vejo seus olhos repletos de gratidão ao recebermos a família e os amigos em nossa casa no dia do natal. Ela pouco cozinha, mas nessa ocasião faz questão de preparar a ceia farta e comprar bons presentes para os convidados. Ela enfeita a casa inteira com decoração natalina e depois se enfeita toda. Como gosta do natal! Eu sempre compro um presente previsível e ela o recebe com o entusiasmo de uma atriz e a sua mais sincera gratidão.

Também me sinto grato por ela estar ao meu lado, ela sempre esteve, participou das decisões mais difíceis e cuidou para que não me faltasse os remédios na hora certa, o meu prato preferido com a frequência necessária e um armário distinto (de pinho) para eventos de gala e reuniões importantes. Ainda hoje quando está rindo alto ao telefone com Mariana ou alguma amiga eu posso ver aquela menina de risada escandalosa que gostava de festas. A menina que gostou de mim mesmo sem eu gostar de festas e que escolhi para ser a minha mulher. Por quem quase sempre fui fiel. Pela qual na maior parte do tempo me senti grato.

Amor não é gratidão. Dizem muitas coisas do amor, boas e nem tão boas. Acho que o amor é aceitar o defeito mais irritante daquela pessoa porque ela faz a melhor torta de abóbora do mundo. Penso que o amor é clichê, é uma escolha sem nada de mágico ou excepcional, afinal o previsível anula o excepcional. E eu sei, sei toda a sua rotina de cremes após o banho da noite e a sua rotina de cremes e maquiagem todas as manhãs. Raramente ela me surpreende, sei como vai reagir a cada notícia, a cada história que conto. Sei o que a faz rir e chorar.

Já me disseram que quando amamos alguém ficamos felizes com a felicidade do outro mesmo que isso represente a sua ausência em nossas vidas. Não imagino essa hipótese. Talvez porque me acostumei com os remédios na hora certa, a risada escandalosa dela misturada ao som da TV e outras coisas como essas. Acostumei com a sua cabeça recostada em meu peito quando estamos deitados na cama, antes de dormir e depois do ritual dos cremes, enquanto escuto o relato detalhado do dia dela e resumo o meu. Todos os dias, um dia depois do outro, um dia igual ao outro.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Fones de Ouvido

Depois de quase uma madrugada inteira insone lendo Como ser Legal e me divertindo com as divagações de uma jovem (imagino eu) senhora, acredito que suas questões existenciais não passam das mesmas questões adolescentes a respeito do certo x errado, as mesmas que todos trazemos inevitavelmete para o resto das nossas vidas por nunca termos conseguido solucioná-las.

Então quero convidá-la para uma cerveja. Eu a escutaria. Faríamos piadas sobre todas essas baboseiras do inconsciente coletivo e debocharíamos dos clichês mais babacas. Será que ela gosta de cerveja? Poderíamos beber um Martini em um bar classe-média, em um fim de tarde, uma quarta-feira provavelmente. Depois sairíamos trançando as pernas e acordaríamos no outro dia novamente culpadas por todas as coisas, inclusive por termos ficado tão bêbadas na quarta-feira.

Essa culpa é da religião que inventou um monte de certos e errados. Desafio o Deus da igreja a gostar de mim assim como eu sou, uma pessoa “legal” com certeza, com uma vida praticamente digna. Falo, rezo e oro, digo a Deus para entender o meu lado das coisas, explico o que faria de mim uma mulher melhor... que Ele poderia até se orgulhar. Deus deve usar fones de ouvido. Talvez goste de Metallica e Tim Maia.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Adelaide 141


A rolha do vinho rosé gazeificado quebrada dentro da garrafa, o quarto onde o caos conforta, roupas espalhadas pelo chão, o casaco de frio rasgado, a toalha de banho pendurada no armário. Trilha sonora de Janis Joplin para acompanhar a noite de mais um dia frio, um dos últimos. O retrato do Bob Marley pensando e a luz fraca que não permite nem uma boa maquiagem acabam de ilustrar o cenário principal de uma boa história.

É dia 21 de dezembro de 2005 e já compramos as passagens para o natal em New York. Depois viajarei sozinha por aí, ou com o Baudolino, livro que só procuro quando tenho saudades de ler em minha língua natal para economizar o prazer de alcançar uma das únicas raízes que tenho. Na sequência vou embora para sempre, mesmo que eu volte um dia nada será como é hoje. Nós seremos diferentes assim como já somos tempos depois dos nossos caminhos terem se cruzado.

Estamos em uma das conversas ideológicas de final de dia, falamos do produto da intersecção de dois pontos no universo, aprimoramos nossa tecnica Casa de Bonecas que consiste em nos observar com distanciamento para perceber o que nossa intensidade característica não permite. Treinamos o método e acreditamos fielmente em seus efeitos benéficos para nossa compreensão de todas as coisas. Bebemos nossa garrafa de vinho.

Janis Joplin canta "Oh Lord, won't you buy me a Mercedes-Benz? My friends all drive Porsches, I must make amends. Worked hard all my lifetime, no help from my friends. So Lord, won't you buy me a Mercedes-Benz?". Penso que nunca rezamos, nem nas fases difíceis, acreditamos sempre nos nossos próprios métodos de fazer tudo ficar bem. Tudo sempre ficou bem.

O que sobrou do dinheiro reunido servindo pizza e limpando escritórios e casas está guardado em uma pasta verde dentro do armário. Um pouco paga as últimas contas e o resto será destinado às viagens e à festa de reveillon. Será a última. Olho a disposição das nossas coisas no quarto, umas encontradas, outras doadas e algumas poucas compradas como o cesto de roupas sujas de nylon, pink, com a flor amarela em cima. Acho divertidíssimo. Tento guardar os detalhes em minha memória.

Não sei se os outros moradores do basement podem escutar a Janis berrando ou as nossas gargalhadas das conclusões metafísicas daquela conversa, conclusões essas certamente afetadas pelo cansaço e pelo vinho. Temos talento para o bom humor, acho que é nosso ponto mais forte. Penso que é isso que quero levar quando for embora. O resto vai se transformar em uma lembrança boa de um lar que tive na rua Adelaide, número 141.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Solo

É certo que quando tropeço ainda vou ao encontro do seu braço sempre estendido, do seu abraço sempre pronto. É em você que me equilibro para continuar meu número solo na corda bamba.

Eu, você e a nossa solidão. As lembranças de quando a gente foi feliz nos nossos dias de tédio. O conforto de todas as risadas e a desobrigação de ter que ser alguém interessante. Eu, você e a nossa ilusão de nos consertar agora



Como nos Filmes da TV

Estaria tudo bem se ela não tivesse caído no clichê de se apaixonar. Fez loucuras por ele, movida por uma paixão insana que a deixava gaga, sem vontade de comer e com as mãos tremulas. Looser. Ele se esquivava sempre, era evasivo e tinha umas estranhezas, como por exemplo, não lhe revelava a idade. Ela achava que ele beirava os 35, nunca soube. Sabia que ele era casado porque ele mesmo havia contado e por motivos bastante óbvios suspeitava que a história da separação não era real.

Encantava-se pela forma que a tratava, com todo cuidado e cavalheirismo, mas principalmente pela força que tinha, era implícita, ele era a própria força. O jeito sedutor, intenso, a autoconfiança, o respeito que impunha, a admiração com a qual as pessoas o olhavam a fascinava. Ele era um shot de tequila, saía com ele um dia da semana e sentia a sua falta todos os outros, queria embebedar-se, mas não tinha nada além daquele shot, apenas um, sem mais.

Ele ficou aprisionado em sua mente, o comparava com todos os caras que conhecia e ninguém o superava em nada, não conseguia se interessar por mais ninguém. Perdeu o foco. Bem ela, uma mulher linda, centrada e que sempre foi acostumada com a estabilidade, estava alí vivendo um romance com um homem que claramente nunca a assumiria, mas que a enlouquecia. Queria ela enlouquecer? Parece que sim. Parece que estava cansada de sua vida centrada e estável.

Foi um caos. Tentou deixá-lo diversas vezes. Não sei se fazia isso porque sabia que a cada vez que o deixava ele a procurava novamente e assim sentia-se "necessária" por um instante, ou se fazia porque seu instinto de autopreservação dizia que ela era a presa frágil de um predador experiente. Não tinha a menor chance de escapar, era a lei da natureza. Ele a consumia.

Uma das vezes que tentou deixá-lo ele a abraçou e chorou, estava deitado em seu colo e ela estava exausta, quase desmaiando por não comer e nem dormir devido a mais uma discussão dos dois. Ela precisava ir, sabia, mas ele insistiu para que ficasse. Ela queria fugir mas sua cabeça dominava seu corpo fraco e cansado que foi arrastando-se sozinho ao encontro dele. Despedir-se. Foi a última vez que ficaram juntos.

Viram-se algumas vezes depois, ele aparecia para tomarem um café. De alguma forma ele também não queria deixá-la, não sei se por orgulho ou por maldade, talvez por loucura. Ela concordava com os encontros porque nesse processo de abstinência apenas o fato dele aparecer já a tranquilizava um pouco e assim ela conseguia seguir em frente sem a antiga ilusão de que o tinha. Ela já sabia que não o tinha e nunca teria. Isso era dolorido e aliviador ao mesmo tempo.

Quando estava finalmente preparada o chamou para uma conversa. Sabia que não precisava justificar nada, mas queria um ritual, precisava olhar nos olhos dele e externalizar o fim para que ela mesma acreditasse em sua decisão. Assim fez, disse que não o veria nunca mais. Ele, cheio de opiniões e com sua intensidade rotineira, argumentou, protestou e negou. Ela não esmoreceu e estava tão convencida dessa vez que ele se resignou a sua vontade pois havia lhe dado tudo que queria, não tinha mais nada a oferecer. Então a abraçou e a rodou no ar como nos filmes da TV. Se despediram para sempre.

Ela me disse que nunca mais soube dele e quando perguntei se não tinha vontade ou curiosidade ela disse que não, que gostava de lembrar da sua paixão avassaladora daquele jeito, naquele extato momento em que ela estava nos braços dele, no ar, como nos filmes de TV. Eu não entendi. Ela explicou que assim era pois aquele foi o único momento da história em que os dois compartilharam o mesmo sentimento, a mesma decisão.

O Retorno de Saturno

O meu aniversário de 28 anos foi ontem. Comprei um vestido pink piriguete, fiz reserva em um bar bem perto da minha casa e chamei uns amigos. Estava completamente animada com a comemoração. Naquele dia eu suspeitava que me casaria com meu namorado de anos, desenvolveria minha carreira na multinacional em que trabalhava e então teria a vida que o inconsciente coletivo nos leva a buscar sentindo finalmente a felicidade que as famílias que tomam café da manhã nas propagandas de margarina sentem.

Eu compraria um apartamento com ajuda dos meus pais e dos pais do meu futuro marido, que seria pago, provavelmente, em alguns anos com bastante economia, depois nasceriam meus filhos e eu teria os problemas da mulher moderna conciliando a maternidade, casamento, emprego e estética e então encontraria minhas amigas de infância em alguma festinha de criança e conversaria de todas essas coisas nos intervalos dos berros e corridas para impedirmos que nossas crianças enfiassem coisas sujas na boca, caíssem de cara no chão ou se matassem.

O dia do meu aniversário de 28 anos foi bastante divertido, muitas risadas, muitas caipirinhas e cervejas, muitas fotos, muitos casais na mesa e diversas perspectivas. O bolo estava bom, foi dado pelo meu então namorado, como sempre lá estava ele, companheiro, me mimando e cuidando, sempre atento para que tudo desse certo, claro que eu poderia suportar todos os defeitos dele, todos nós temos defeitos. Devo ter ido dormir feliz e bem resolvida depois de tirar a maquiagem e me preocupar um pouco com as calorias extras do dia.

Uma mulher prestes a fazer 30 anos precisa se atentar a algumas regras sociais básicas: vislumbrar uma carreira promissora, ou no mínimo ter um cargo significativo desses que pelo menos não dão vergonha de colocar embaixo da assinatura de e-mail. E se o casamento já não for fato consumado e tão pouco se aproximar, é obrigatório pelo menos ter um noivo ou, que seja, um namorado que nos dê a segurança de uma vida estável e normal. Ou isso ou o fracasso.

As coisas para mim foram acontecendo no sentido oposto. Quando eu olhei o que me aguardava precisei repensar em tudo. Não sabia mais quem deveria estar sentado ao meu lado na propaganda de margarina e, ainda pior, que diabos estava eu fazendo na propaganda de margarina? O que eu queria fazer antes disso, o que eu queria viver antes disso? O que eu queria de fato sentir? Surtei.

Bolha de Sabão

Cada vez que te deixo ir sinto a sua falta, e te trago de novo e de volta. E você vem, de novo e de volta. Vivo as risadas dentro de uma bolha de sabão colorida. Eles protestam, eu ignoro, eles avisam, eu sublimo. Cada vez que te deixo ir é um alívio. É vazio. Eles apóiam! Sinto a sua falta! Eles protestam! E te trago de volta? De novo e de volta? E você? Vem? Olho no espelho e então vejo nos meus olhos o reflexo do que está atrás de mim. Sinto preguiça. Eles sorriem. Estou atrasada, percebo, não há nem tempo pra passar o batom. Eles me apressam da varanda.Vou. E quando desperto não vejo mais a minha bolha de sabão colorida. Ela estourou e eu já não estava lá. Finalmente.

Um Conto Nosso

Você acorda, me manda uma mensagem no celular, eu não respondo. Você não me encontra no msn e envia um e-mail e uma outra mensagem no final da tarde, ambos sem resposta. Então acessa meu orkut, porém ele não existe mais. Intrigado liga no meu celular e o telefone só chama até cair na caixa postal: “Oi, aqui é o Marcelo, liga mais tarde ou deixa um recado”.

Um pouco assustado você tenta ligar na minha casa e uma mulher atende, o nome dela é Fátima e ela diz não morar nenhuma Renata naquela residência, você ainda confere o telefone... sente tontura e senta na cama.

Quando se sente melhor vai para o computador a procura dos meus e-mails, alguma foto, o emotion da Hello Kitty no msn, não encontra nada. Procura minhas mensagens no celular e nada. Anda pelo seu quarto tenso a procura dos livros, a pedra, a carta... mas não encontra nada que te dei nos lugares em que guardou.

Liga para algum amigo, algum para quem havia contado sobre mim, mas eles pensam que eu desapareci simplesmente porque sou louca e uma roubada. Você por um momento se dá conta que nunca saímos com outras pessoas, éramos sempre nós dois e ninguém pode provar minha existência a não ser as garçonetes da Ofner e o porteiro do meu prédio.

Meu prédio parece uma boa idéia! Você pega o carro já de madrugada e dirige até Moema em alta velocidade, no caminho toca a música surreal e você pensa que a distância até o prédio nunca foi tão grande. O porteiro mal humorado atende o interfone e diz que não mora nehuma Renata Granato alí, você tenta me descrever e lembra-lo que esteve lá na terça feira passada, mas como está um pouco nervoso altera a voz e acaba aguçando o mal humor do porteiro, que simplesmente desliga o interfone.

Você volta para a sua casa, não consegue dormir nem por um segundo, fica deitado na sua cama lembrando de cenas que parecem não existirem e duvida pela primeira vez da sua sanidade. Chega 6h da manhã liga para a sua pisicóloga. Quando conta que os presentes também sumiram ela sugere um outro especialista com quem você pode conversar e você perde a paciência: “Acha que eu enlouqueci??” e vai embora.

Está atolado de trabalho na editora mas não consegue fazer nada, pessoas ligam no seu celular e no telefone. Você acha o nome de uma virose seríssima na internet que nem sabia existir e diz que acabou de contrair a tal virose, então desliga o celular e tenta pensar em um jeito de provar a sua sanidade para si mesmo.

Começa a lembrar nomes de pessoas de quem eu já falei, Raquel, Bia, Janinne... e por Janinne ser um nome incomum resolve localiza-la no orkut, e percebe que Janinne não é um nome tão incomum assim. Passa a tarde olhando a página pessoal delas e não lembra de sentir fome ou sono. Sua mãe repara que parece transtornado e comenta, mas você não arranja forças para contar nada.

Após algum tempo vê uma foto que parece familiar e apesar de não encontrar mensagens minhas encontra alguns nomes conhecidos e também o endereço do msn dela. Adiciona a Janinne no seu msn e sorte! Ela está online, então começa uma conversa.

- Desculpa te adicionar sem conhecer mas preciso de uma informação, você conhece alguma Renata Granato?

- Quem é você?

- Um amigo dela... na verdade eu não vejo a Renata a algum tempo e preciso falar urgente com ela, e ela falava de uma Janinne...é mesmo urgente

- Vixe... Renata Granato... não sei... como ela é?

- Alta, tem olho verde, fez FAAP, mora em Moema, loira...

- Acho que não conheço.

Você exausto resolve deitar um pouco, mas quando está deixando o computador vê que a Janinne continua falando

- Engraçado é que ontem eu fiz uma regressão e apareceu uma cena que eu não lembro de ter vivido, e nela tinha uma Renata de olho verde... mas era morena... estávamos fazendo guerra de sorvete.

- Regressão?

- Faço uma terapia com hipnose para lembrar com mais precisão algumas situações e... enfim, apareceu uma Renata em um apartamento que nunca fui... devo ter sonhado nessa hora, sei lá, mas era tão real.

- Hum, onde foi isso?

- Em um prédio que eu morei em Moema, lá na frente do Shopping Ibirapuera, mas não lembro de nenhuma Renata que morava lá.

- Me da o endereço?

- Não é quem você está procurando, eu nem lembro dela! Mas se vc quer...

Você vai até o endereço porque lembra que eu mostrei um apartamento na frente do Shopping Ibirapuera. Estaciona o carro e toca o interfone, um porteiro simpático atende, chama Gil. Quando você fala no nome Janinne ele logo abre o portão.

- A molecada era terrível, a Janinne aprontava muito com as outras crianças, lembro das amiguinhas dela, a Bianca, a Bruna, a Regina, a Fernanda... mas Renata eu não lembro, se tivesse alguma eu lembrava! Ah se lembrava! O trabalho que me davam...

Você volta para sua casa e está tão cansado que acaba adormecendo sem pensar em mais nada, dorme até a manhã do dia seguinte, quando acorda mais disposto, com fome e uma idéia. Procura a Janinne no msn e pede o telefone da terapeuta que ela fez a regressão. Marca uma consulta na mesma tarde.

Surpreende-se quando chega ao consultório, ela é jovem e receptiva. Escuta toda a sua história com a maior atenção do mundo e ainda não duvida de você. Lembra que a Janinne teve uma memória sob estado de hipnose que não recordava. Comenta que algumas vezes isso acontece pois é normal que o subconsciente traga algumas lembranças apagadas em situações como aquela.

Pede para que você se sente em uma cadeira e começa o processo de hipnose te induzindo a lembrar a última vez em que me viu, você vivencia a visita surpresa que me fez e ainda regride para algumas situações anteriores.

O nome dela é Laura. Curiosa com a situação resolve se aprofundar no seu caso, talvez para descobrir uma nova patologia psíquica, talvez porque ela acredita no incomum, mas para você não importa.

Você começa a freqüentar o consultório dela e após algumas técnicas ela sugere que você interaja comigo em uma das vivências. Uma técnica que é usada por alguns terapeutas para substituir um pensamento traumático no subconsciente, o que não se torna verdade obviamente, apenas anula a situação anterior, mas Laura dentro de suas pesquisas pensou ser uma técnica válida. Ela te regrediu á visita surpresa novamente.

- Re, eu sei que vai parecer loucura, mas amanhã você vai sumir!

- O que?

- Juro que vai... sem deixar rastros.

- Como assim? Como sumir? Ta louco?

- Você é a única prova que eu não estou louco, mas o problema é que você está agora na minha mente e fora daqui eu não posso te encontrar!

- Você ta me assustando!

Então Laura induz você a ir deixando o estado hipnótico, ela está disposta a fazer mais testes e ainda não havia decidido sobre a veracidade da sua história ou a sua condição mental e só a dúvida dela já confortava.

Ela decide fazer uma terapia intensiva, tem interesse na situação e já não cobra pelas sessões diárias, que deveriam colocar em prova sua sanidade, também não cobra as regressões. Laura continua com a técnica interativa e pede pra você relatar a ultima vez que falou comigo, quarta feira de noite, e depois pede que reviva a situação e vai sugestionando seus passos durante a hipnose. No telefone você me fala

- Rê, você vai desaparecer hoje de noite, eu to indo aí ficar com vc!

- Ás vezes você me assusta com umas coisas que você fala, bem agora que eu me convenci que você é normal!

Já em um estado hipnótico profundo não sabe se você teve uma boa idéia ou se foi a Laura quem sugestionou o diálogo.

- Na verdade isso é uma desculpa pra ver você, to indo te buscar para tomar uma margatita frozen no El Kabong, quer?

- Quero! Mas pra que tudo isso só pra me convidar pra sair? Oxi! É só falar!

- Foi só uma piada sem graça... pra variar, mas então, to saindo daqui.

- Liga quando chegar.

Vamos até o El Kabong de Pinheiros, você parece nervoso e eu pergunto se está bem e você começa a conversar sobre qualquer outra coisa no caminho até que chegamos e sentamos em um sofá confortável daqueles enormes que ficam nos fundos. Então eu começo a contar da minha terapia e você interrompe:
- Testando minha memória, uma vez você me contou que fez guerra de sorvete na sua casa com a Janinne né?

- Contei? Não lembrava disso... mas foi mesmo!

- Como foi?

- Um dia que eu tava de castigo por causa das notas na escola, queria ir na pista de patinação mas meu pai não deixou, então eu, a Janinne e a Regina fomos assistir filme na minha casa. Meu pai tinha saído.

- Regina?

- Foi, ela também estava de castigo. Então fomos com umas bolsas gigantes da Disney no supermercado e roubamos três potes de sorvete da Kibon e umas coberturas. Nem lembro qual era o filme, mas no meio dele já estávamos empanturradas de sorvete e começamos a guerra!

- Ai ai ai

- É! Então começamos a correr pela casa jogando sorvete umas nas outras, na cama, no chão, no espelho do banheiro, armário da cozinha, roupa, cabelo... foi ótimo!

- Aí seu pai matou vocês depois.

- Nada! A gente tomou banho e limpou a casa toda antes dele chegar e ainda tirou fotos antes! Depois te mostro.

E continuamos conversando até tarde, nada anormal acontece, mas você não quer ir embora para casa.

- Escuta, vamos lá na minha casa que eu vou gravar umas músicas que faltaram.

- Hoje?

- É rápido, depois te devolvo.

E antes de levantarmos você ainda fala me abraçando

- Não some!

- Claro que não! Já passamos do terceiro encontro!

Entramos no carro, você dirige para a sua casa e eu começo a passar mal.

- Sei lá, acho melhor eu ir p/ minha casa, não estou muito bem!
- O que você tem?

- To vendo as coisas embaçadas, acho que tô tendo uma crise de pânico meu deus! Vou morrer... não! Não é real!

- Calma, não é real, vou parar o carro.

E você estaciona o carro, precisa fazer uma baliza, e quando volta seus olhos para mim eu já não estou mais lá

- Renata!

Depois de muito tempo você acorda em uma cama desconhecida de um quarto de mulher, olha a sua volta e não entende nada, então levanta, se dirige até a porta e encontra Laura segurando uma xícara de chá.

- Essa vivência foi muito forte pra você! Resolvi te trazer pra minha casa e não foi nada fácil viu? Precisei pedir ajuda para o segurança do consultório e o porteiro do meu prédio. É melhor você se restabelecer antes de voltar para a sua casa. Passa a noite aqui e amanhã te levo, você pega seu carro e voltar.

Você tenta segurar a xícara de chá mas se sente um pouco tonto e Laura o ajuda a sentar-se no sofá da sala. Você está confuso e ela te abraça durante algum tempo e depois vocês se beijam.

Durante o processo da terapia vocês já haviam se envolvido, a pesar de nunca ter percebido nenhum sinal da parte dela anteriormente sempre sentiu-se amparado pela compreensão e presença dela, uma mulher definitivamente interessante.

- Laura, eu estava pensando no que aconteceu hoje – você diz.

- Não pensa hoje, pensa amanhã, tenho algumas idéias, mas hoje é melhor descansar a mente. Vem, vamos dormir.

No outro dia acorda tentando assimilar a quantidade de informações, e ainda, preocupado com a aflição da sua família diante de tantas ausências e o trabalho.

Ainda assim procura Janinne no msn para certificar-se se Regina era o nome da outra menina que estava na guerra de sorvete. Ela te enche de perguntas e por fim, com ajuda de Laura, você a convence a participar de algumas sessões de regressão.

Laura havia começado a escrever uma tese sobre a pesquisa do seu caso, já grava as suas sessões há algum tempo e antes de apresentar o material como uma nova hipótese a ser estudada convence algumas pessoas que poderiam ter algum contato comigo a participarem de sessões de averiguação. Amigas de infância do prédio em que a Janinne morou, como a Bianca, a Bruna e a própria Regina.

Algo impressionante acontece. Poucas pessoas lembram durante a regressão de algumas cenas comigo, outras não lembram nada. A Regina nunca conseguiu regredir até o dia da guerra de sorvete. A Bianca lembrou de um aniversário em que estávamos todas juntas, porém a Janinne vivenciando a mesma data não conseguiu lembrar da minha presença lá.

Mesmo os que lembraram não relataram nenhuma familiaridade comigo após a hipnose. Em uma das sessões a Bruna consegue identificar o meu apartamento no prédio em que passei a infância, ela descreve meus pais e o meu irmão, mas na realidade, no edifício Argel, no 5º andar, nunca havia morado aquela família.

Com o tempo as regressões foram sendo espaçadas. Laura reúne o material mesmo sem ter nada muito concreto e procura publicar mas nunca consegue concluir ou provar o seu trabalho. Consegue apoio de profissionais holísticos que também não ganham credibilidade com suas teses.

Você se recupera do choque, mesmo eu sendo real apenas para você o fato de outros terem lembrado de mim nas regressões não comprova sua insanidade, então sente-se melhor. Retorna ao trabalho e aos seus afazeres. E são tantos que mal pode pensar nos fatos incompreendidos. E nem quer.

Com o tempo se afasta dos envolvidos na história mas procura manter contato com Laura para acompanhar sua tese, até que descobre que ela também desistiu por falta de provas e credibilidade.

Tudo caminha bem na editora, você trabalha por três anos e além de muitos projetos realizados, ganha muito dinheiro. Então se sente estafado e resolve estudar francês em Paris e depois conhecer a Europa.

Prepara as malas, documentos, compra um guia e parte em viagem. Após dois meses de curso traça um roteiro, faz reserva nos melhores hotéis e viaja conhecendo todos os países da Europa que te parecem interessantes.

Está andando em Ravena, na Itália a procura de um café e quando passa por uma praça perde o ar, o coração dispara e a visão embaça. Você vê alguém muito parecida comigo sentada em um banco, lendo um livro. Tão parecida que parece irreal. Aproxima-se.

Talvez o reflexo do sol. Talvez o perfil. Para na minha frente, e eu tiro os olhos do livro e olho você.

- Renata!

- Oi! Espera, espera... já to lembrando de você!

- Lembra?

- A minha memória é horrível, mas sei que te conheço... de onde?

- O que você está fazendo aqui?

- Na praça?

- Em Ravena.

- Eu sempre estive aqui! Como assim?

Então você respira fundo, pensa por um minuto e decide.

- Desculpa, na verdade eu lembro de você mas não de quem te apresentou, achei que poderia ser até do Brasil! Porque já sabia que era brasileira.

- Engraçado mesmo... porque também lembro de você, mas do Brasil só se for em algum período de férias, só estive lá duas vezes, assim que nasci a minha família já se mudou pra cá. Você está aqui só conhecendo?

- Eu estava em Paris, agora estou conhecendo uns outros lugares e depois pretendo ir pra Londres fazer um curso e morar um tempo lá, acho que fico por lá...

- Ah é? Eu estou indo em novembro pra Londres fazer um mestrado, devo ficar por lá uns dois anos!

- Hey! Quer ir tomar um café comigo?
- Vamos! Adoro café.

- Eu sei...

- Sabe?

- Você tem cara de quem gosta de café e de margarita frozen.

- E gosto mesmo!

- Vi um bar mexicano aqui perto... que tal?

- Tudo bem... mas ainda você vai ficar me devendo o café, hem?

- Devo. Claro.

Com Limão e Sal

"E então eu senti meu corpo sendo levado pela montanha russa, quase que em queda livre, quase no primeiro looping, quase vomitei. Comigo foi sempre assim, crio e vivo das minhas invenções, dos suspiros e das flores devoradas por Severino Ariza apaixonado por Firmina Daza. A única diferença é que com o passar dos anos fiquei voraz por qualquer coisa que me faça sentir."



"E eu fiquei alí, parada. Lembrei dos filmes babacas de Hollywood que tratam dos clichês dos encontros e desencontros. Lembrei das histórias que acabaram mal e também das que acabaram. Porque não assumo logo que faço parte desse coletivo surreal buscando alguma história eterna como tantas outras que lembrei? Umas que me foram contadas, outras que vi acontecer. São tantas histórias e tantas pessoas. São tantas histórias por pessoa. Umas de verdade, outras inventadas."



"E então finalmente uma manhã de sol. As coisas acontecem preguiçosas na segunda-feira, mais uma roupa social, a radio noticia o trânsito no trânsito, trabalho conforme demanda, nenhum cigarro, nenhum café e muita gastrite. Nenhuma pressão. Dentro de mim passa e repassa uma vida inteira cheia de fantasias, enquanto mais uma reunião é agendada em outro horário vago."



"Estou tendo vertigens. Vivenciei de todas as formas aquela expressão borboletas no estômago. Tem várias e umas mariposas das gigantes também. Acho que quero vomitar. Uma por uma. Aliás, essa é a segunda vez que eu falo em vomitar. Deve ser moléstia."



"Continuo aqui. Mesmo computador, mesmo teclado, mesmo e-mail, mesmo frio na barriga. A minha mão treme. Ridículo. Os sentimentos são todos ridículos e descabidos. Esse negócio de procurar coisas que me façam sentir não faz sentido. Racionalizar não me faz parar de sentir. Perdi a merda do controle"


"Quero outra vez. Com limão e sal!"

De Office Boy a Estelionatária (reflexões de uma estagiária)

Quando eu pensei a primeira vez em ser alguma coisa quando crescesse pensei em ser veterinária, mas desisti logo que o meu cachorro ficou doente, achei que medir a febre do bichinho pela bunda era uma prática muito abusiva para o meu estômago.

Anos depois fui com uma amiga visitar o pai em uma agência de publicidade, tudo era tão colorido que me apaixonei! Cheguei em casa correndo, animadíssima, pronta para contar aos meus pais a novidade. Eu havia acabado de resolver a mais profunda questão existencial do ser humano, tinha acabado de tomar uma das decisões mais importantes da minha vida. Eu decidi ser publicitária.

Meu pai disse que eu morreria de fome. Disse que eu morreria de fome se fosse psicóloga, quando assim decidi tempos depois, e me convenceu que se eu fosse médica poderia ser psiquiatra, quase psicóloga. Pelo menos febre de gente não se mede pela bunda. Quando chegou a hora de decidir me revoltei com toda essa história de morrer de fome e entrei na faculdade de Publicidade e Propaganda.

No segundo semestre arrumei um emprego de vendedora de loja de shopping mas depois de um mês com apenas uma folga quinzenal, trabalhando doze horas no sábado e levando bronca de uma gerente de dezesseis anos eu decidi procurar um estágio.

Meu primeiro estágio, quanto glamour! Consegui uma vaga em uma produtora de filmes e passei a frequentar o escritório todos os dias... exercendo a função de office boy. Nunca vi a gravação de um documentário, nunca participei de uma edição.

O meu chefe rico e bonitão tinha uma namorada médica, mas começou a sair com a assessora de imprensa, então a namorada médica descobriu e passou a me ligar diariamente pedindo informações sigilosas do chefe bonitão.Pelo menos eu era útil pra alguém ali! Logo descobriram que eu podia ir ao banco em meio período e cortaram o meu horário e o meu salário. Cansada da loucura e para a infelicidade da namorada médica que ficou sem informante, eu encontrei outro estágio.

Meu segundo estágio foi em uma consultoria de marketing, onde ao contrário do que dizia a proposta, eu nunca vi um projeto de consultoria na minha frente. O meu trabalho era a complexa tarefa de imprimir cartas, descobrir o telefone de possíveis clientes, depois ligar e descobrir o endereço, e então colocar as cartas no envelope e levar no correio. Adorava quando o correio estava lotado e eu demorava mais para voltar ao tedioso escritório.

Depois consegui estagiar em uma empresa grande, onde acreditei que a política de estágio obedecesse a um código de moral e ética condizentes com o termo. Doce ilusão! Fui colocada para substituir uma profissional formada ganhando menos de um terço do salário dela, e ela puta porque perdeu o emprego colocou senha em todos os documentos do computador e foi embora guardando segredo das senhas.

Ninguém sabia de nada, ninguém me ensinou nada. A minha diretora não tinha tempo de falar comigo e costumava berrar "Você tinha que ter feito issoooooooooooooooo", "Você não tinha que ter feito aquilooooooooooooo." E eu tentava responder "Mas eu pensei" e ela "Você não tem que pensar naaaaaaaaaaaaaaaaaadaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!"

Descobri várias mutretas e fiquei amiga do jovem aprendiz, nós nos divertíamos na hora do almoço criando planos mirabolantes para desmascarar todas as tramóias da empresa, iríamos quase dominar o mundo, mas não tivemos tempo. Um dia resolvi acabar com aquela palhaçada e falei para a diretora que a minha situação lá era um absurdo, que haviam me jogado no cargo sem preparo nenhum e que ninguém me supervisionava, que aquilo não era estágio. Ela concordou, me mandou embora. Maldita razão!

Tentei trabalhar como assistente comercial, mas não deu certo, não vendo nem notas de cem na promoção!

Ainda antes de me graduar fui estagiar em outra consultoria, dessa vez aprendi bastante, até que o meu chefe, professor renomado de uma instituição conceituadíssima, achou mais útil me colocar exclusivamente para corrigir as provas dele só porque eu disse que tinha interesse em seguir a carreira acadêmica. Sobre o assunto ele me ensinou que eu não precisava ler as provas, apenas fazer comentários genéricos para que os alunos pensassem que eu, ou melhor, ele havia lido a prova. Também me ensinou a falsificar a assinatura dele, e assim virei estelionatária.

O único comentário que ele fez foi: Você está dando muito dez! Eles não podem achar que as coisas são fáceis. Com isso acabaram-se os estágios e a minha vontade de seguir uma carreira acadêmica.

Fiz minhas malas e logo após a minha formatura fui viajar um pouco. Quem sabe não tenho mais sorte como trainee.

Dramática (2009)

Fico me arrastando pela casa de pijama o dia inteiro. Me sinto dramática. O meu computador tornou-se o meu melhor amigo e eu fico sentada com ele no sofá, variando as posições para não doer as pernas ou a coluna. Procuro emprego, pesquiso mestrado, procuro a mim mesma no Google. Não acho nada.
Tenho saudades de outra versão de mim. Me sinto mais dramática ainda. Eu tenho uma versão que viveu há anos atrás, talvez 10. Ela é corajosa e sonhadora. Ela tem muito tempo pela frente e sabe disso. Seus valores, seus sonhos e o tempo a protegem. Eu também tenho muito tempo, mas ninguém me protege.
Freqüento um centro espírita para encontrar paz, vou começar um trabalho voluntário domingo para sentir-me útil. Faço análise para descobrir alguma coisa que ainda não sei. Hoje foi a minha segunda sessão. Falei de violência o tempo inteiro, tudo que eu lembro é brusco, é de rompante. É uma antítese de mim, tão frágil, tão lenta.
Vou na academia no final da tarde, gosto do movimento. Quero continuar a sentir-me bonita porque as mocinhas são bonitas e seus finais são felizes, estáveis e protegidos nos castelos para sempre.
Hoje não fui na academia porque tirei o siso. Ao em vez disso fiquei em casa e briguei com meu pai. Acho que foi por território. Acho que foi porque não tenho casa, não tenho dinheiro e me sinto dramática. A dor me deixa mais dramática ainda.
Todas as noites rezo antes de dormir, não sei se Deus me escuta. Quando sonho anoto em um caderno para ver se tenho alguma pista. Quando rezo eu peço alguma pista. Amanhã é e sempre será outro dia. Ou mais um dia.