domingo, 28 de agosto de 2011

Aquela Menina

A beleza dela afrontava as outras meninas de modo que lhes despertava seus medos mais sombrios do abandono, da rejeição e do desafeto. Ainda porque era doce e de personalidade delicada, nenhuma qualidade negativa saltava aos olhos para que elas a pudessem condenar livrando-se rapidamente do desconforto. Ela não sabia que sua presença metamorfoseava as outras em animais selvagens. Bichos que instintivamente lutavam por um lugar no universo das aparências, o que lhes garantiria a dignidade e possível felicidade como asseguravam os valores ensinados ali mesmo. Elas a criticavam em tudo o que fazia, dizia e planejava, com comentários sutis e olhares oblíquos desvalorizavam tudo o que a ela pertencia. Sentiam um enorme prazer em vê-la excluída do grupo ou em dificuldades. Ela não podia ver o que causava ao escancarar sua beleza notável diante de figuras tão comuns. Caso soubesse certamente se faria feia tamanha a dor que sentia diante do desprezo e em nome da ânsia em ser aceita pelas demais. Ignorava a verdade porque desde cedo teve o infortúnio de trazer à tona o pior lado delas. O tempo passou e aquela menina perdeu gradativamente a confiança em si mesma e se mostrava a cada dia mais titubeante e insegura, quanto mais frágil menos incomodava as outras que, ainda assim, cuidavam enquanto podiam para que ela não reivindicasse o seu lugar.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Fragmentos

Eu caminho na Avenida Paulista cruzando com você a todo o momento, de terno, de bigode, de regata e skate na mão, de correntes de ouro, vestindo jeans e camiseta pólo, loiro, moreno, japonês. Procuro reconhecer você fragmentado em cada indivíduo que se aproxima de mim, se reconheço, mesmo que seja um pouco, já me serve e podemos ir ao cinema ou beber um chope. Se nele muito encontrar de você posso me apaixonar insanamente. Posso escrever-lhe versos de amor para você e enviar-lhe cartas que falam de nós dois. É provável que ele me deixe por não se encaixar na minha saga apaixonada por você ou por incoerência, discrepância e falta de senso, de nexo. É provável que eu o deixe por estar sempre frustrada, continuamente decepcionada pelo engano cometido. Como posso errar tanto se procuro apenas você? Sei onde está agora, seu nome e endereço, tenho as suas chaves. Mas fantasio que vou te encontrar em outros lugares, em uma reunião de trabalho, perdido na noite, em um ônibus qualquer ou caminhando na Avenida Paulista, na direção oposta.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Ilusões

Ele chegou naquela madrugada e não tínhamos conversado ainda, o constrangimento pairava entre nós dois, quis lembrar em vão o momento exato em que perdemos a intimidade. Estávamos sentados na mesa do café da manhã, eu calada esperando ele comentar que não gostava do meu corte de cabelo, ele mastigando o pão com olhar perdido no nada. Finalmente ele me encarou e disse que meu cabelo não estava legal, esperei que completasse a frase dizendo qualquer coisa sobre o quanto eu havia engordado e tornando assim o momento ainda mais desagradável, isso não aconteceu e fiquei frustrada, quase levantei e desfilei na cozinha para que ele reparasse os quilos a mais. Eu o odiaria. Eu queria odiá-lo e isso me assustou.

Angustiada com meus pensamentos comecei a falar sem parar. Falei do tempo, dos cachorros, da receita da broa de fubá. Via as minhas frases se desfazendo no ar como fumaça enquanto ele cortava outro pedaço de bolo respondendo a minha ladainha com grunhidos esporádicos, não disse uma só palavra. Pensei que deveríamos dormir e mais tarde tudo estaria diferente (não ousei pensar que estaria bem). Certifiquei-me de que ele estava bem instalado no quarto de hóspedes e depois tentei um beijo sem sucesso, ele mal moveu os lábios. Eu estava me esforçando e não duvidava do empenho de quem viajou quase seis horas só pra poder me criticar e ignorar pessoalmente. Fui dormir com vontade de acordar em outro tempo, em outro lugar.

Acordei horas depois, ele estava sentado em minha cama me observando. Sentei sonolenta e com medo de dizer qualquer coisa errada afinal só o silêncio parecia seguro naquele momento. Então ele falou primeiro, disse que estava ali para descobrir se ainda me amava. Contou que havia se tornado um homem mais tolerante nos meses em que eu estive longe e que ainda assim não sabia se suportaria nossas diferenças. Achei racional e nada respondi. Sempre tive pavor de perdê-lo e por muito tempo fingi que não tínhamos diferenças, eu mentia pensando que assim preservaria o seu amor, inventava...

Eu sempre soube que o amava, sabia que o amava mesmo naquele momento assim como sabia que só o amor não bastaria. Percebi que nossas limitações eram o ponto final mais escancarado que poderia existir, eram o campo minado que separava nossos universos particulares. As ilusões vão embora sem olhar pra trás quando as nossas invenções deixam de nos convencer, é difícil pra cacete não sair correndo atrás delas pedindo que fiquem um pouco mais, para um café ou coisa assim.

Estava exausta, mas disposta a ficar mais um pouco para o último dedinho de prosa como é do meu feitio, sou sempre a última a deixar as festas. O dia estava lindo e eu tive uma idéia, o convidei para irmos até o rio, ele adorava pescar e poderíamos almoçar na represa. Ele sorriu deixando formar as covinhas que eu tanto gostava, então começamos a planejar o passeio. Não acordamos nada verbalmente, mas nenhum de nós dois pronunciou qualquer frase negativa, deixamos pra outro dia mais nublado, talvez. Foi uma tarde alegre de sol, cerveja e peixes.

domingo, 14 de agosto de 2011

Vida...ou sei lá o que

De tempo em tempo
Perdido no tempo
De quem persegue
O tempo perdido
Ou sei lá o que

Em busca da sorte
Sonhando como um menino
Ainda cheio de garra
Confiante em Deus
Ou sei lá no que

Outro rosto anônimo
Que briga com o destino
Consciênte da razão
Dos livros, dos seus...
Ou sei lá de quem

É mais um que procura
Sonha
Confia
Enfrenta e desafia
Sabe-se lá o que

De tempo em tempo
Perdido no tempo
De quem persegue
O tempo perdido
Ou sei lá o que

Chegou cansado
Justificando sem graça
Seu retorno prematuro
Do encontro com a felicidade
Ou sei lá de onde

Querendo uma trégua
Pra beber uma cerveja
E dormir tranquilo
Livre do relógio, do calendário...
Ou sei lá do que

Foi mais um que procurou
Sonhou
Confiou
Enfrentou e fracassou
Sabe-se lá o quanto



Adaptado de Hildemberg Campi Gomes Filho




segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Sentido

Acho que foi de tanto eu pedir um milagre. Acho que foi porque eu parei de esperar um milagre. Sei lá. Deve ter sido porque as coisas são assim, do jeito que são. Não há nenhum mistério relevante. Não há nada nas entrelinhas dessa história, a simplicidade das palavras que se encaixam uma nas outras dão sentido às frases. As gírias, os sotaques, os coloquialismos carregados de clichês revelam uma verdade escancarada, praticamente absoluta. É isenta de ambigüidade. Nada além, nada a mais. É banal, sensível e verdadeira. Bonita a sua maneira, comum e trivial. Efêmera. E de tão acessível que é, é o próprio milagre desnudo, de braços abertos diante da sua perplexidade ao encará-lo.